29.10.18

Cancioneiro Poveiro

"Um povo sem memória, é um povo sem história"


O cancioneiro Poveiro teria por força das circunstâncias, que ter o mar, a luta diária dos pescadores, a crendice, a fé e o amor, como mote principal. De uma simplicidade desarmante mas rica em pormenores, o nosso cancioneiro, é sem margem para dúvidas, um repertório de situações vividas pela gente do mar. No nosso folclore, essas quadras cantadas pelo nosso Rancho Poveiro estão lá evidenciadas, "Vamos ver a lancha nova" quando se pede a proteção da Senhora e dos anjos, "do mar que é casado, tem mulher, e bate nela quando quer", do "E um abraço, e um abracinho, ora aperta amor aperta" e tantos mais que fazem parte do nosso cancioneiro.

Lembro-me de quando os pescadores chegavam a terra diziam quando viam a mulher depois de longa ausência: "Ah "faneca"! e quem ouvia dizia para ela com um sorrisinho maroto: «Hoje o teu óme quer "combersa".

Nessa noite o cancioneiro seria mais:

"Deitei-me na tua cama,
Teu lindo rosto beijei;
Já logrei o que queria
Agora descansarei."

Outras mais:

Quero viver e morrer
Num apertado abraço;
Como nas ondas do mar,
Lá vive e morre o sargaço.

A vida do marinheiro,
É uma vida triste e dura,
Pois toda a vida trabalha,
Em cima da sepultura

Nas ondas do teu cabelo,
Vou-me deitar a afogar,
Para que o mundo saiba;
Que há ondas, sem ser do mar.


fontes consultadas: "O Poveiro" de Santos Graça e "Linguagem Popular e Cancioneiro Poveiro" de Júlio António Borges

... E aqui fica o último vídeo que gravei do nosso Rancho Poveiro.


27.10.18

Póvoa de Varzim em 1952

Encontrar um vídeo da minha terra do ano e do dia em que nasci (15 de agosto, dia da Nª Sª da Assunção que se vê nesta filmagem e encerra o filme) e, numa sorte incrível, o bairro onde nasci, o Bairro Nova Sintra é, sem dúvida, formidável.

Tudo o que o vídeo mostra faz parte dos meus tempos, pois foi neste ambiente que cresci. Depois a vila/cidade modernizou-se e, desta Póvoa, só restam estas lembranças.

26.10.18

O "Ressuscitado"

João dos Santos Pereira Marques e a sua mulher Aurora, A-dos-Assobios, morava na ilha onde morei durante um ano, a Ilha do Padre. A casa deles era do lado da Rua Cego do Maio, mesmo à entrada da Ilha. A Ilha fazia "ligação" com a Rua Dr. António Silveira pela casa do meu avô e da minha avó, Benjamim Lopes da Conceição e Arminda Dias, e da do tal padre que deu "nome" à ilha.

Ficou-lhe a alcunha de "ressuscitado" porque numa noite, a catraia onde ele seguia «Tememos a Noite», soçobrou durante uma tempestade. Três dias se passaram, todos os restantes pescadores foram dados como perdidos. Mas uma silhueta recortava-se no mar quando o barco do mestre Zé Alardo estava no mar. O filho viu uma bóia a bombordo, perdida, «Mude de rumo - disse ele ao pai - que há ali qualquer coisa.» Era o João Caramelho.

O corpo estava carcomido pelos peixes e caranguejos. Com o corpo em chagas e com uma multidão na praia aguardava-os (avisados pelo Manco do Vermelho que tinha regressado antes), para verem tamanho "milagre" e tocarem no Ressuscitado. Este foi para a Casa dos Pescadores, onde permaneceu algum tempo, regressando à Ilha do Padre, onde a minha querida avó acabou de o tratar e dando parte do que trazia das aldeias onde vendia o peixe, ajudava o casal na hora do infortúnio.

O João Caramelho, o "Ressuscitado", faleceu em fevereiro de 1972.

fontes consultadas. "Histórias do Mar da Póvoa" de José de Azevedo, e a minha irmã mais velha, São, que sempre viveu na Ilha do Padre com os meus avós.

foto: Associação Poveira de Colecionismo

Cegos papelistas

(isto faz parte da cultura de dois povos, o nosso e o da Galiza)

Já aqui tinha contado o que via quando, era ainda uma criança, na terra onde nasci. Uma senhora, cega, agarrada ao braço do seu companheiro, cantava canções de faca e alguidar, do homem que trocou a mulher por uma bicicleta, de uma criança com cara de cão, da mulher que arrancou o nariz do marido pois este era velho e, na noite de casamento, em vez de aquecer a moça, ficou-se "enrodilhado" com frio, a mãe que matou os três filhos à machadada; a costureira que descobriu que o noivo a enganava e se matou no dia do casamento; a Maria da Graça que foi enganada pelo Manuel Celestino e atirou o filho recém-nascido para o telhado; o coveiro de Pínzio que desenterrava os mortos para lhes tirar a roupa. Enfim era uma "desgraçadeira" para quem os ouvia que, puxando do lenço, fungavam o nariz, limpavam os olhos marejados e era nessa altura que os folhetos com as canções, se vendiam.

Ai povo povo, que o sal das tuas lágrimas, alimentavam aquelas almas que ali desfiavam o rosário das misérias populares.

Eram todos "cegos", eram os cegos papelistas.

"Vem de muito longe a memória dos cegos papelistas que, por mercados, feiras e romarias, apregoavam casos estranhos, sucessos inauditos, virtudes hagiográficas e relatos noticiosos, às vezes prognósticos e adivinhações. (...)

Os cegos papelistas do século XVIII vendiam as histórias impressas em folhetos de papel barato, com letra miúda de má qualidade, por vezes com umas quantas imagens a alimentar o fascínio das palavras que contavam histórias em versos de pé quebrado, (...) Os cegos cantores do século XX seguiam a mesma receita, com as letras das músicas e as fotografias das estrelas do momento à mistura."(...)

[Texto de José Alberto Ferreira publicado originalmente com o CD "Canções do Ceguinho", editado em Maio de 2003]


Fica aqui um vídeo, "Casório divertido", de César Prata que em 2003 fez uma recolha destes cantares do tempo dos nossos avós e os gravou.



Fotos de ceguinhos e folhetos:


Cantores de rua

Todos os anos os via deambulando pela então vila de Póvoa de Varzim (cidade em 1973, através do decreto 310/73). Como era óbvio, via-os nos momentos de grande festejo na Póvoa, como era o da festa da Nª Sª de Assunção.

Ele com a viola, ela, cega, apoiava o braço direito no do homem e, na mão esquerda, levava muitas folhas bem elaboradas, com canções impressas que vendia a quem deles se abeirava para as comprar. A senhora tinha uma belíssima voz e, acompanhada à viola, cantava temas de desgraças e amores proibidos.

Era um choradinho que enternecia as almas de quem os ouvia. Paravam em locais onde houvesse muita gente, como no antigo Mercado Dr. David Alves, onde quase sempre estavam, mas também para os lados do Casino, local de referência de passagem de muitos turistas. A Póvoa nos anos 60 desenvolveu-se e já era uma vila de muito turismo, tanto pelas festas, como pelo mar.

Os poveiros são conhecidos pelos Lobos do Mar e esta era uma das canções. Ficou-me a letra na memória de tanto a ouvir cantar...

"Lobos do Mar

Numa praia de banhos, atraente,
Contente se banhava um rapazito,
Seu pai contemplara, alegremente,
A graça esfuziante do filhito.

O garoto sorria entusiasmado,
Mas nisto ouviu-se um grito lancinante,
Ele afastou se um pouco e foi levado
P'las ondas da corrente, apavorante.

Aos gritos aflitivos do pequeno
E ao ver dum pai extremoso a dor tão forte,
Um velho pescador, bravo e sereno,
Arrancou a criança ao seio da morte.

P'ra dar ao valoroso salvador,
0 pai tirou dois contos da carteira,
Mas, olhando-o de frente, o pescador
Não quis e respondeu desta maneira:

Tal dinheiro, senhor, longe de mim...
Meu nome não importa conhecer,
Porque os lobos do mar são sempre assim,
Não salvam por interesse, é por dever."

As lágrimas poveiras deslizavam pela singeleza, mas emocional letra. Os Lobos do Mar são sempre assim... rudes como o mar, mas sensíveis como crianças.

Podemos ouvir aqui este tema na voz de Frutuoso França


foto: três elementos junto ao Casino da Póvoa (anos 50), mas na minha época só vi dois.

24.10.18

Alma Poveira

Naufrágio, 27 de fevereiro de 1892

(morreram, nesta tragédia, 105 pescadores)

– ‘Não tentes o socorro, compadre, que morreis todos. Deus te guie e leve a salvamento! Leva o último adeus para as nossas mulheres e nossos filhos! Até à eternidade, compadre!’

O velho mestre João Praga levantou a mão num gesto de despedida mas não respondeu. Duas lágrimas rolaram-lhe pela face – mas ninguém mais lhe ouviu uma palavra. Leme bem firme, todo o dia e toda a noite até ao alvorecer do dia seguinte, em que entrou em Vila Garcia, na Espanha. Salvou a companha. Dois dias depois chegava à Póvoa, de comboio. Após a tragédia nunca mais comeu, nunca mais falou. Oito dias depois da sua chegada – morria! A grande dor de não poder salvar – matou-o!...”


imagem: mulheres poveiras esperando os barcos