6.12.08

Descalcinhos pela lama!...

  Lembro-me pouco dos dias de Natal passados na Póvoa. Sei que íamos à cangosta que ligava a Rua das Lavadeiras à Rua Rocha Peixoto, ficava precisamente atrás da Fúnebre onde moramos, recolher o musgo no muro da quinta para o presépio.

  Na Rua da Cordoaria, onde também moramos, conhecida pela Rua do “Cu Tapado” por não ter saída (hoje está aberta e faz ligação com o Bairro dos Pescadores), o musgo era recolhido da parede que tapava a rua ou íamos até às pedreiras.

  O Natal que mais me lembro foi na casa dos meus Avós na Rua António Silveira.

  O presépio era feito com os pastorinhos que, não sei como, nos vinha parar às mãos depois de ultrapassado o gradeamento do velho “Mercado David Alves”. As cestas de verga das vendeiras ficavam um pouco mais leves mas era por uma boa causa.


  Sentados no chão da entrada com uma toalha em cima de um cobertor, ali era comido o bacalhau, com batatinhas e couves a acompanhar, regadas com molho fervido, depois vinham as rabanadas de vinho, a aletria (eu era um “doido” por aletria), os figos, as nozes, os pinhões e as castanhas.


  Tudo que tinha que ser partido era partido com o que se tivesse à mão, ou com os socos (sandália de madeira), martelo, como o meu avô era sapateiro lá tinha que ter uma forma em ferro (tripé com forma que entrava dentro do calçado, onde se faziam os concertos, em cima dos joelhos), para se colocar as nozes e avelãs e zás!.. Lá ia martelada!


  Cortava-se o Bolo-Rei e era uma festa para quem apanhava o brinde. Quem apanhasse a fava já sabia que no ano seguinte seria ele pagar o Bolo-Rei. Nessa altura não havia a preocupação das crianças engolirem o brinde ou a fava (quando tínhamos brindes iguais, trocávamos por outros com os amigos). Hoje, as crianças estão superprotegidas e até esse prazer lhes retiraram.


  Depois com os pinhões jogávamos ao “Rapa”, pião com quatro faces, cada uma delas tinha uma letra: R (rapa), T (tira), P (põe) e D (deixa).


  Cada jogador colocava uma quantidade definida de pinhões e rodava-se o pião. Se saísse a letra R para cima, o jogador rapava (recolhia) os pinhões todos, se fosse o T tirava tantos pinhões quantos tinha colocado, com o P colocava tantos pinhões quantos tinha colocado de inicio, se era o D tinha que deixar tudo com estava.

  Mas o jogo que sempre me lembro de termos jogado, tanto na Póvoa como em Luanda, era ao Jogo do "Quino" (Loto). Ou a tostão ou a pinhão quando se fazia linha (quinar) era um recolher do monte que estava sempre dentro da caixa do jogo. Tinha-se sempre que conferir não fosse o que quinava ser duro de ouvido e marcar a mais um nº que não tinha saído. A última tirada era cartão cheio e o dinheiro ou o que fosse a dobrar. Eram horas a jogar ao "Quino".



  E assim se passava na maior das alegrias a Ceia de Natal. Cá fora, noite adentro, ouviam-se ferrinhos, rélas (reco-reco), castanholas, testos (tampas de panelas),... O que era aquilo? Eram grupos de rapazes que vinham de porta em porta cantar as “Cantigas ao Menino”:

«Descalcinhos pela lama
Vamos todos a Belém
Adorar o Deus Menino
Que Nossa Senhora tem.

Já está nascido
Já por nascer
Nossa Senhora
Nos pode valer»



... E mais algumas que não me lembro, e em cada porta onde paravam perguntavam:

«Ó da casa?! Vai ou não vai?»


  O meu avô dizia: - «Vai» - e ouvia-se logo cá fora o pessoal a bater nos ferrinhos e demais “instrumentos”. Abria-se a porta e oferecia-lhes nozes, pinhões, castanhas que era o que havia. Dinheiro como não abundava se se desse algum era uma festa, mas com ou sem dinheiro cantavam:

«Esta casa é alta, alta
Moradia para o nascente
Os senhores que moram dentro
São filhos de boa gente


Refrão (bis)

Glória no Céu e na Terra também
Já nasceu o Deus Menino
Filho da Virgem Mãe»


... E passavam à porta seguinte!

  Se o dono da casa nada dissesse, o grupo seguia sem em antes lhe cantar:

«Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto


... E para reforçar ainda mais o remoque!

Esta casa cheira a breu
Aqui mora algum judeu


e mais esta...

Esta casa é tão alta,
É forrada a papelão!
O senhor que nela mora,
É um grande comilão!


... E seguiam caminho terminando com:

Refrão (bis)

Glória no Céu e na Terra também
Já nasceu o Deus Menino
Filho da Virgem Mãe»


  Depois do Rapa, ou do Quino, nós, os mais miúdos, íamos dormir, mas dormíamos desassossegados pois queríamos que chegasse depressa a manhã para ver os brinquedos que estavam no sapatinho. Fosse um carro ou um avião de folheta, umas castanhas, nozes ou outra guloseima já ficávamos satisfeitos, o Menino Jesus não se tinha esquecido de nós.

  Hoje, na Consoada, à meia-noite, já está toda a garotada há espera da prenda. O Menino Jesus deu lugar ao Pai-Natal e assim o mercantilismo veio substituir o verdadeiro espirito natalício do meu tempo.

  No dia seguinte lá vinha a roupa-velha, que mais não era que os restos da Ceia anterior, tudo desfiadinho e regadinho com o molho fervido.


  Foi o último Natal, enquanto crianças, passado na Póvoa. No mês de Fevereiro do ano seguinte, três rapazes e uma rapariga (eu, os meus dois irmãos e a minha irmã mais velha) partíamos no barco “Quanza” rumo a Luanda, tinha eu nove anos!

  Nunca mais voltamos a ver os nossos Avós com vida. Mas esse último Natal ficou guardado na minha memória para o sempre!

P.S. - Os "Cantares" que aqui coloquei podem não serem estas as palavras exactas, mas passados tantos anos é-me impossível lembrar-me delas como eram. Pesquisei mas não vi referências nenhumas acerca destes «Cantares de Menino» do meu tempo.

  Estou alterando algumas quadras consoante vou recebendo informações sobre estas cantigas. O meu obrigado desde já ao amigo Manuel Lopes de Aver-o-Mar e ao meu irmão mais velho. As quadras recebidas que não cabem nesta lembrança farão parte de um outro tema.



Boas Festas!

4.12.08

Minha Mãe... Aurora!





  Mãe, o teu nome,... Aurora!

«Aurora tem um menino tão pequenino... ». Era a canção que muitas vezes cantavas quando eu era pequenino.

  Aqui estamos, a tua prole. Foto tirada na Póvoa para ser enviada para o Pai que lá longe, sozinho, te esperava, nos esperava, para dar um novo rumo à vida.

  Olha bem para nós, os mais velhos, de calçõezinhos pelos joelhos, camisola, camisa e meias, tudo igual.

  Cada filho nascido em sítios diferentes, sempre com a casa às costas conforme a prole ia aumentando.


  Trabalhavas para contribuir para o sustento que nessa época a vida não era de “Playstation” e cartões de crédito. Éramos felizes assim. Fazíamos os nosso brinquedos, brincávamos na rua, no Natal era um carrinho de folheta, uma carrocinha com um cavalito a puxar já era uma festa.

  Lembro-me de um Natal, teria aí perto de sete anos, que te vi mais a tia Glória na Junqueira e fiquei curioso em saber o que andavam ali a fazer as duas. Entraram numa loja de brinquedos e, espreitando, vi que estavas a comprar os brinquedos que eu e os meus manos tínhamos pedido. Pouca coisa, mas era com muita alegria que recebíamos na meia o nosso presente. Sabes uma coisa minha Mãe? Até esse dia eu pensava que era o Menino Jesus que trazia os brinquedos, era assim que me tinham ensinado. Que ingénuo eu era. O consumismo ainda não se tinha instalado no Mundo e, do Menino Jesus, passaram para o Pai Natal pois o saco dele era maior. Agora as crianças têm tudo e não ligam a nada.


"Aurora tem um menino
Mas tão pequenino
O pai quem será
É o Zé da Aroeira
Que vai prá Figueira
Mais tarde virá

No adro de São Vicente
Onde há tanta gente
Aurora não está
Cala-te Aurora não chores
Que o pai da criança
Mais tarde virá"


Não estás não Mãe, partiste de nós há dois anos!